2.6.07

Outro nível


São 4:30 da manhã. Estou sentado, de pernas cruzadas no meio da estrada, mesmo no centro desta tão conhecida avenida. A cidade dorme toda, nos seus tranquilos sonhos que inspiram os mais audazes. A Clarividência está ao meu lado, sonolenta e irritante, a chatear-me com a pergunta repetida de o que é que estamos aqui a fazer. Peço-lhe, pela milésima vez, calma... Não é hora para te ouvir, minha amiga. Agora quem governa este pequeno mundo sou eu. Espera...


Da sombra da calçada surge o lírico, e sonhador, meu amigo. O meu melhor amigo... Dizem os mais cegos que ele é o que se diz alternativo. Pobres daqueles que não têm alternativas nas suas vidas. Vem apressado e carrega às costas a sua arma de combate no campo de batalha que é esta sociedade: a sua guitarra... Cumprimento-o efusivamente e a Clarividência olha de lado para ele, não o conhece e não lhe inspira confiança. Não sejas tola!


Depois de dois dedos de prosa e uns cigarros trocados, o meu amigo levanta-se, afasta-se uns metros pelo negro da estrada e dá uma mija eufórica onde, de manhã e de tarde, passam centenas de carros em velocidade stressante. Ouço o barulho do mijo a chapinhar nos paralelos da avenida... O silêncio é mágico. Se gritar, sei que ouvirei o meu eco para lá da estação...


A Clarividência está chocada com o comportamento do meu amigo e da minha cara de felicidade. Queixa-se do frio e da iminência da chuva e que quer ir para casa, para o quente da cama. Antes de ir preciso que sintas uma coisa, amiga... Sê paciente...


O meu amigo senta-se ao meu lado e começa a dedilhar acordes na guitarra. O som das notas musicais eleva-se no ar, toca nas folhas das árvores, escala os prédios cinzentos que nos abraçam e, finalmente, voa para a noite nublada, tentando chegar às estrelas... E depois começa a cantar, o meu melhor amigo, o grande inspirador... Baixinho e devagar...


A Clarividência estremece ao meu lado e olha embevecida. A noite tornou-se mágica. E, como fãs extasiadas, as gotas, duma chuva miudinha e gelada, começam a cair das nuvens. As árvores dançam ao sabor do vento e a chuva torna-se mais forte. O meu amigo canta mais alto e os acordes da guitarra acompanham a melodia da chuva a embater nas pedras da calçada. Encharcado até aos ossos, fecho os olhos, abro os braços e ergo a cabeça para o céu, sorrindo como há muito não me lembrava de sorrir.


O mundo chora e sorri ao mesmo tempo, enquanto todos dormem. Aqui, no meio da estrada, à chuva, atingi o clímax qual orgasmo sensorial... A Clarividência chora de felicidade. Ganhámos asas que não se vêm...


Hoje atingimos outro nível...