30.5.07

Gritos na Noite

Sei de tudo! Que tens medo de te afirmar e tremes a caneta. Gritas em surdina; tens o mundo preso na garganta. Eu suspiro. Sussurro-te ao ouvido:
- O que sucede agora?
A história... está desenhada no cérebro e ele trabalha sem escrúpulos. Vomita ideias e tu queres agarrá-las. Ideias aqui, ali, acolá. Ideias, ideias, ideias.
- Calma, peço-te. Calma. Tens uma voz dentro de ti a querer falar, abre os lábios e deixa-as sumir para o papel.
Árduo, esse trabalho de exprimir as ideias pegajosas, entranhadas nos miolos, suspiras. E o espelho devolve-te um cadáver amorfo, o teu espectro criativo anorético e de pele rasgada... És tu desgastado, com fome de inspiração, de energia...
E a Lua vai alta e ri-se de ti. Ela vê-te, sabe-te de cor. Conhece-te dessas longas noites de batalha introspectiva. Tu contra o mundo das ideias; o mundo das ideias contra ti. Puro devaneio sem sangue, mas com suor q.b.
- Psiu, chama ela. Psiu! Queres ajuda?
Devolves-lhe um esboço do sorriso mágico que reservas para os que guardas na gaveta. Ela torna a rir-se e tu estás incomodado.
-Por acaso preciso, anuncias tu. Ah, maldita, fez-te pedir-lhe ajuda. O ego arde dentro de ti. Maldita, maldita!
- Não te ajudo, goza-te ela. Tu tens tudo em ti!
Onde, onde?
- Dentro de ti, algures. Estou a ver, estou a ver! Aí, aí!
Aqui onde?
- Dentro desse teu corpo que desvalorizas nas horas mortas. Que tal não adormeceres quando sou rainha? Que tal seres rei aqui e comigo? Que tal tentares voar?
Nunca te ensinaram a voar...
- E quem ensinou todos os outros a voar? A Lua solta gargalhadas sem eco. Repete-se: quem os ensinou a voar? Vá, não é charada nenhuma, é pura retórica!
Não sabes nem queres responder. A Lua desaparece no horizonte e tens a folha em branco. Sorris. As ideias estão a desarrumar-te o quarto, divertidas.
- Usa-nos, usa-nos!
E se a ideia ganhar vida? Escreves no papel. E se eu lhe sentir o pulso, a respiração, o perfume? Acrescentas. E a ideia senta-se ao pé de ti e diz-te:
- Usas-me?
Está a crescer. A crescer nessas linhas tortas azuis que desenhas cada vez mais vigorosamente, de língua entalada nos dentes. Nasce vida e saíu-te das mãos. És um deus improvisado e efémero, mas não te importa, porque teve o sabor mais intenso e viciante que alguma vez provaste.