13.5.07

Memórias de Ti

Umas das mais intrigantes personagens que se atravessaram na minha vida foste tu. Nunca percebi muito bem qual era o teu nome; mais tarde percebi que tinhas vários. Todos se sentiam desconfortáveis a teu lado e, simultaneamente, fascinados com o talento depositado na arte de viver. Eras, meramente, um artista. Nunca te vi expressar outras emoções se não as positivas. E quando tu rias, enchias a sala que, subitamente, emergia num silêncio curioso. Nunca compreendi se as pessoas te adoravam ou te invejavam. Eu nutria por ti uma espécie de amálgama de emoções positivas e negativas: via em ti um modelo que invejava em simultâneo.
Eras estranho. Todos comentavam quando atravessavas a rua. Apontavam a tua figura intrigante que se passeava absorta pelas avenidas. E os carros paravam para te ver atravessar, mesmo quando o vermelho brilhava no semáforo. Quando te sentavas entre nós e deixavas escapar um murmúrio, o mundo emergia num silêncio compenetrado para te ouvir. Eu ouvia-te. Por vezes ouvia-te na minha cabeça, nas noites de insónias. E, aos poucos, comecei a sentir. Sentir. Algo que não conseguia conciliar com nada. Não era amizade. Não era compaixão. Não era amor. Eu via-te e não sentia o entusiasmo dos outros. Eu via-te e não tinha saudades tuas. Eu via-te e sentia. Algo que não sabia o que era. Fazias-me sorrir contantemente. Mesmo quando estava triste. Acho que era isso. Via-te e apetecia-me rir às gargalhadas. Rir até me doer o abdómen. Rir sem parar. Rir com prazer. Expressar o cume da minha felicidade através do meu riso interminável.
E, subitamente, vi-te desaparecer. Bastou fechar os meus olhos e tu nunca mais voltaste. Em vez de rir apetecia-me chorar. Chorar. Chorar. Chorar. Chorar lágrimas. Lágrimas que me queimassem com a sua acidez. E quando perguntei por ti, ninguém soube responder. O mundo emergiu num profundo silêncio de dúvida e compaixão. E anoiteceu na minha vida esvaziada. Ou o sol eclipsou-se.
Até que um dia te descobri. Sepultado nos teus próprios medos. Senti o nada. E uma brisa fria que me congelou os sentimentos. O meu corpo entorpeceu numa inércia descabida. As minhas mãos balouçaram ao sabor da brisa.
Foi aí que percebi que nunca te tinha dito nada. E era tão tarde. Tão tarde.
Para onde fora toda a energia? Toda a emoção de iniciar um novo amanhã? Estavas tácito no teu espaço, vítima do destino. E eu fui consumindo-me aos pedaços. Cada pedaço de mim caía sobre as raízes dos ciprestes. Um aroma a decesso planava em meu redor. Apetecia-me correr. Para longe, para lado nenhum. Apetecia-me naufragar numa ilha perdida nos oceanos. Apetecia-me voar pela galáxia, procurar outro planeta. Este planeta perdera toda a sua potencialidade.
Contaram-me que perdeste a coragem. Afinal mentiste-me. Mentiste-nos a todos. Tu tinhas medo. Medo de ti próprio e de toda a tua arte. Falhaste. Porquê? Porquê lançares-te em busca de conforto longe da vida? Não era ela que te dava toda esse talento? Não era ela que fazia virar as atenções todas para ti?
Eu estava apaixonada por ti. Por tudo aquilo que representavas. Tu representavas o que eu nunca seria: um ser livre. Eu sempre me senti presa às fraquezas do meu espírito. Não respirava o mesmo ar que tu. Eu tinha os defeitos da humanidade. E tu não tinhas. Não tinhas, pois não? Não podias ter. Não tinhas.
E sucumbiste! Às tuas próprias mãos? Julgavas-te Deus? As tuas mãos não deveriam tirar, mas criar vida. Tu deste-me esperança. Deste-me vida.
Agora acabou.
Obrigado por me teres assassinado. Vejo-te amanhã.
27 de Agosto de 2005