2.4.07

Prioridades



Dia calmo e sem pressa numa tarde que se mostra lenta e merdosa. Estou no meu quarto, enterrado no sofá azul que reflecte a cor do meu espírito momentâneo. Trocava, agora, o meu império de folhas de rascunho por um café e um cigarro que me dêem a tranquilidade impossível. Triste vida a de pobre na classe média.



Tenho que trabalhar mas não me apetece. Haveria quem dissesse ao ler a ultima frase que “a mim também não me apetece muita coisa e tenho de fazer...”. E é nesta estúpida frase, tão cheia de lógica racional e empreendedora, que eu chamo a Clarividência que dança lá fora, despreocupada e indiferente ao mundo mecanizado que lhe passa diante dos olhos. Ela demora a vir ter comigo e não me diz nada quando entra no meu quarto. Senta-se na borda da cama, indiferente ao meu estado de espírito melodramático. Não levo a mal... A gaja já me conhece e sabe que isto passa rápido.



Ei-la pois, minha barata amiga (não tenho posses para amigos caros), a questão fulcral que me faz meter os dedos pelos cabelos e gritar de boca fechada. “A mim também não me apetece muita coisa e tenho de fazer...” Porquê? Porque raio tenho eu de trabalhar? Porque carga de água tem a sociedade de se esfalfar noite e dia para garantir o tão aguardado bem-estar? Porque é que a suprema felicidade só se atinge tendo algum dinheiro no bolso? E porque é que esse dinheiro só lá nos cai se tivermos de trabalhar para o ganhar?



A Clarividência levanta-se e manda-me um estalo! Grita comigo, a histérica, e diz que eu não posso querer um mundo utópico e paradisíaco em que nada é ganho com esforço. Grita e berra, e berra alto, que o mundo em que eu vivo de vez em quando só serve para me distorcer os sentidos e procurar respostas impossíveis para perguntas sem razão de existir. Depois põe-se a bater com a cabeça na janela, a maluca, enquanto eu penso no que ela disse.



Talvez ela tenha razão. Claro que tem razão ou então não era a Clarividência! Se eu continuar a imaginar o mundo utópico e não viver no mundo real, o meu futuro sussurrar-me-á ao ouvido que eu estou literalmente fo… (quebra na paragem de susceptibilidades). É pena que assim seja e que quem vigie os alicerces da Terra não seja sonhador como eu. A civilização não evoluiu a partir de utopias e quimeras, que são mais “quimerdas” para os grandes reis da Babilónia, esses grandes senhores que dizem que o mundo lhes pertence sem saberem que nós é que pertencemos ao mundo. Já estou como um dado amigo meu que diz que “isto é a humanidade rasca e pobre de ideias, vista a olho nu. Se Adão soubesse no que isto ia dar, só tinha fodido a Eva no cu.”. Mas, indo por aqui, começaria a divagar e a Clarividência já adormeceu em cima dos meus livros. E baba-se, a porca!



Saí do sofá e abri o portátil. Rio-me das prioridades materiais que um gajo tem de fazer na vida. Vou continuar o meu trabalho. Não me apetece mas a mim também não me apetece muita coisa e tenho de fazer. Ai, como é fácil ser humano...